Quando a indesejada das gentes chegar… (Manoel Bandeira)
por Adriana Rotelli Resende Rapeli*
A recente reportagem publicada no Itapira News nos convoca: precisamos falar sobre o suicídio. A preocupação oportuna do autor da matéria faz eco à nossa. Nós, do CAPSad (Centro de Atenção Psicossocial – Álcool e Drogas) já estávamos entre nós conversando e estudando o tema. E realizamos, no dia 15 de dezembro, uma reunião com profissionais de saúde do município com intuito de capacitação sobre o tema.
Creio que os serviços de saúde, imprensa, entidades religiosas, segurança pública, promoção social, precisam se aliar como recursos que cuidam de nossa sociedade. Nossa cidade parece dar sinais de sofrimento. Pois, embora como cita a reportagem, há tendência de aumento geral no número de suicídios no Brasil e no mundo, o que vivemos nos últimos três meses na cidade é peculiar.
O Brasil há muito deixou de ter baixo risco para suicídio e ocupa hoje o oitavo lugar no mundo, numa competição em que o melhor é quem tem menos pontos. Mesmo se vermos a estatística citada, no Brasil o aumento não foi maior que 10% no último ano. E ainda ficaríamos em torno de 5-6mortes por 100.000 habitantes. Enquanto que em nossa cidade houve 19 mortes por suicídio computadas em 2017, uma média portanto, 5 vezes maior. E um aumento que até agora, no ano, já representa um aumento de 100% dos casos, já que em 2016 foram 9 casos, uma média de 7 nos últimos 3 anos (ainda acima da média nacional). Temos uma epidemia de suicídios.
A reportagem fala do problema de saúde pública que o suicídio representa. Nossos 19 casos nos alertam para um fenômeno relevante, pois na pior epidemia de dengue, há exatos dois anos, não tivemos mais do que 12 casos. Os suicídios – 32 brasileiros se matam por dia – representam causa de morte maior que AIDS e vários tipos de câncer é, portanto, problema de saúde pública, assim também visto pelo nosso Sistema único de Saúde, o SUS. Este foi o terceiro ano da campanha do Setembro Amarelo, eleito o mês de conscientização sobre a importância da prevenção do suicídio. (1)
Como morte evitável – 9 entre 10 casos o seriam, segundo a Organização Mundial de Saúde, é nosso dever, portanto, cuidar para que façamos a nossa parte. Eis um grande alerta mesmo. A Associação Brasileira de Psiquiatria nos adverte para cuidar também daqueles que sofrem a consequência de um suicida em seu grupo social: família, amigos, trabalho, escola. Calcula-se que de 6 a 60 pessoas sofrem o impacto emocional da tragédia de um suicida. Nos EUA chamam a estes de Sobreviventes do Suicídio. E também merecem atenção das equipes de saúde e de promoção social.
Mas até aqui falei de números estatísticos. Vou falar de mais uma previsão. Supõe se que metade dos suicídios, com alto grau de intencionalidade, isto é, com a consciência de assim o fazê-lo, não são classificados como tal. São considerados acidentes, principalmente de trânsito. Para ampliar um pouco este leque de pensamento, basta olhar os números de acidentes em nossa cidade nos últimos anos. O número de mortes por acidentes é assustador: 57 no último ano. Sem falar nos casos de morte em que a intenção de morrer não era consciente, mas houve uma ação para tal fim.
As doenças teimosamente não tratadas adequadamente pelo seu portador, as profissões de risco, os esportes radicais, os soldados voluntários, o uso crônico de álcool, cigarro e outras drogas que enlouquecem jovens e velhos. De modo que, além de não ser tão simples contabilizar os casos de morte auto-inflingida, classificar o que pode ser um suicídio, é difícil explicá-lo. Um fenômeno humano em toda a sua complexidade e interações dinâmicas, que nós, observadores contaminados no nosso objeto de observação, temos ainda pouco entendimento. O mais instigante é que em toda a parte, mata-se a si próprio mais do que a outrem. Morre-se mais por si mesmo do que em guerras, na contagem global.
Enquanto lemos isto, vários já morreram no mundo, muitos outros estão tentando e um tanto muito maior está morrendo e tentando sem que ninguém o saiba. Suicídios superam os homicídios, nossa estatística municipal não é diferente. Exceção em alguns lugares em que a violência urbana se torna algumas cidades um palco de guerra. Mesmo assim, se olharmos o namoro com a morte como um fenômeno social, não somente individual. Sociedades são mais ou menos violentas em algum momento. Civilizações podem sucumbir à sua destrutividade, assim como pessoas.
No mundo ocidental o suicídio é visto como problema: um sinal de desordem psíquica e/ou social. Se olharmos do ponto de vista individual, o sofrimento que leva uma pessoa a se matar, seja de ordem depressiva, psicótica, impulsiva, de qualquer modo é um sofrimento extremo. Naquele momento, não há saída. Tamanha angústia e tal ato é incompreensível à nossa razão. Matar-se: em alemão a palavra é homicídio de si mesmo. E já foi considerado crime. Algumas religiões puniam o suicida como a um herege e negavam o sepultamento tradicional.
Se para a psiquiatria, o suicídio é ato de uma mente transtornada, para a sociologia é sinal de crise social. Mas, mesclando tais vertentes, penso também ser sinal de uma sociedade melhor desenvolvida tratar de um problema nas várias esferas humanas: políticas, sociais, de segurança pública, de trânsito. E como questão de saúde, como estamos fazendo. O Ministério da Saúde mostra dados que revelam que, como a reportagem apontou, nas cidades em que existe um serviço de saúde mental organizado (no modelo atual, no mínimo existiria um CAPS – Centro de Atenção Psicossocial), há redução de 14% do número de mortes por suicídio. E, creio, por experiência clínica, que as tentativas de suicídio, que costumam ser 3 a 4 vezes maiores que os atos que resultam em morte, também diminuem muito.
Não por coincidência, creio que temos um exemplo disto. Pois embora no CAPSad reunamos os principais fatores de risco acumulados na maioria de nossos casos, felizmente não contribuímos com nenhum destes casos da epidemia de suicídio. A campanha do SUS também indica o “Falar é a melhor solução”. Não porque falar de fato resolva, mas porque é a solução que nos cabe, a nós profissionais de saúde. Até porque estamos lidando com fenômenos que, além de individualmente serem misteriosos, assustadores a ponto de se tornarem tabus – e esconder problemas nunca foi solução para nenhum – há o mistério do fenômeno epidêmico. Se a questão do suicídio desafia filósofos, estudiosos da mente e religiosos (o que se passa na mente, na alma de um suicida), a epidemia de suicídios, que é também um fato social notado em muitas sociedades em alguma época – desafia os sociólogos.
O maior estudioso do suicídio como fato social foi Emile Durkheim. Durkheim diz que há sempre um contingente de mortes por suicídio em cada sociedade. Um número mais ou menos estável. Algumas vezes este fenômeno se torna epidêmico. Como se a intenção suicida fosse, através do tempo, penetrando lentamente na sociedade até explodir em arranques. Depois se acalma. Uma ideia interessante de ver a sociedade como um ser vivo, que envelhece e se renova. Não vou entrar em muitos detalhes de sua obra, mas é instigante pensar que, como gregários que somos, outras forças nos coagem sem que tenhamos consciência.
Outras forças além da consciência foi o que Freud, na psicanálise, aponta. Pois não podemos ver o suicídio como ato isolado, ele indica uma série de comportamentos que levam ao suicídio (ainda que seja por impulso, a impulsividade talvez pré-exista). Precisamos também duvidar da intenção consciente suicida, pois pode ser que ele que mesmo sua lucidez seja enganosa. Pode ser que ele não queira morrer; ele pode guardar fantasias, em geral inconscientes, como a de melhorar seu estado, como a vida em outro lugar, por exemplo.
Nos diz Cassorla, psicanalista e psiquiatra da UNICAMP que muito estudou o suicídio: A pesquisa clínica mostra que o suicida não quer morrer: o que ele deseja é fugir de um sofrimento insuportável, a morte sendo algo acessório, casual. As consequências dessas constatações são várias. Entre elas: 1) não podemos afirmar, com certeza, que atos suicidas são resultantes de uma busca (consciente ou não) da morte; 2) muitos atos que não terminam em morte têm componentes ligados a fantasias suicidas. As ideias de Freud podem nos nortear. Podem nos ajudar inclusive a pensar que os mais vulneráveis mentalmente estarão mais influenciáveis a fenômenos de moda, de grupo, de epidemias de comportamento.
Freud nos revela aspectos incômodos de nosso funcionamento mental. Ninguém gosta de pensar que não controla a própria mente. Uma pessoa que sobrevive à sua tentativa de suicídio será criticada pelos outros, talvez não seja bem tratada nem mesmo por profissionais de saúde. É aversivo pensar que, enquanto sofremos para enfrentar à vida, outros se entregam à morte. As leis da natureza que nos direcionam para a vida, completa em seu ciclo de existência (nascer, crescer, se reproduzir e só então morrer) não explicam a morte por escolha, o suicídio. Na maioria das pessoas, ele nos disse, o desejo de viver compensa o que ele acreditava que também temos: o desejo de morrer.
O suicídio é ato intensamente agressivo, auto-destrutivo. Karl Menninger, psiquiatra americano, apontou três tendências implícitas no suicídio: o desejo de matar, o desejo de morrer e o desejo de se matar. Assassino e assassinado, protagonista e autor de sua própria morte. O instinto para a morte, visto como impulsos voltados para comportamentos auto ou heterodestrutivos, não são, após alguma reflexão, tão descabidos assim. Muitos dos suicídios são tentativas conscientes de morte das quais não acidentes de trânsito podem ser um exemplo (muitos inexplicáveis acidentes podem ser suicídios).
Vale aqui uma olhada nos altíssimos índices de morte por acidentes (quedas, por exemplo) e principalmente os de trânsito em nossa cidade. Mais de 60 mortes, em média, nos últimos 4 anos. Será que não precisamos dar atenção a isto também? A indesejada das gentes, como chamou Manoel Bandeira, quando chega através do suicídio, temos medo com certeza. Porque não entendemos bem. E o que nos é estranho, profundamente nos é familiar, Freud também nos ajuda a pensar. O problema filosófico mais desafiador é saber da vida o seu sentido. Porque o sentido da vida não nos antecede. Ele precisa ser descoberto, sentido, criado por nós, humanos. Seja como religião ou ciência. Morte e vida governam a humanidade. Por isto também não é inoportuno falar de suicídio na época de Natal, em que celebramos a vida, seu milagre e seus mistérios.
- Em 2017 saiu o primeiro Boletim Epidemiológico de Tentativas e Óbitos por Suicídio no Brasil. Um dos alertas é a alta taxa de suicídio entre idosos com mais de 70 anos. Nessa faixa etária, foram registradas média de 8,9 mortes por 100 mil nos últimos seis anos. A média nacional é 5,5 por 100 mil.
- Creio que estas mortes são evitáveis pois a maioria dos suicídios seriam fruto de um ato impulsivo. Sabemos disto pelo que vemos nos sobreviventes, as tentativas foram atos repentinos, ainda que dentro de um contexto de outros problemas.
* Sobre a autora: Adriana Rotelli Resende Rapeli é psiquiatra do CAPSad de Itapira. Psicanalista pela SBPRJ (Sociedade Brasileira de Psicanálise doRio de Janeiro) e SBPSP (Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo).